Terra em transe

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Texto de Maximo Kausch e Erika Sallum

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2015)

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ERA HORA DO ALMOÇO, NO MEIO DA ALTA TEMPORADA DE TURISMO E MONTANHISMO NOS HIMALAIAS, QUANDO O NEPAL FOI VIOLENTAMENTE SACUDIDO PELO PIOR TERREMOTO DOS SEUS ÚLTIMOS 80 ANOS DE HISTÓRIA. DOIS BRASILEIROS INTIMAMENTE LIGADOS À GO OUTSIDE ESTAVAM NO PAÍS NAQUELE MOMENTO E NOS CONTAM COMO FOI SENTIR A VIOLÊNCIA DO TREMOR SOB SEUS PÉS

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Venho guiando expedições a grandes montanhas do mundo desde dezembro de 2014, em uma temporada que tem sido bastante movimentada. Após sete expedições bem sucedidas a montanhas com mais de 6 mil metros de altitude, decidi fazer um pequeno descanso e guiar um trekking tranquilo na região da cadeia do Annapurna, no Nepal. Tratando-se de um trekking de apenas nove dias, eu certamente iria poder relaxar um pouco e não ter que lidar com as tantas complicações que temos em montanhas de grande altitude… Bem, eu estava errado!

Cheguei ao Nepal no dia 14 de abril com um grupo de 20 turistas brasileiros. Visitamos templos históricos em Katmandu e começamos o trekking, saindo de Pokhara, no dia 18 de abril. Tivemos todo tipo de condições climáticas: sol forte, vento forte, chuva forte, tempestade de neve, granizo. Já estávamos no caminho de volta para Ghandruk e eu achava que mais nada poderia acontecer. Esperávamos o almoço ficar pronto em uma pousada em Chomrong, uma vila no Annapurna que serve de parada para quem faz o trekking, quando um som forte capturou a atenção de todo mundo. Já estive em sete tremores de terra e não tive dúvidas: “É umterremoto, galera!”. Todos evacuamos a pousada, com medo que ela desabasse.

Só quem passou por um terremoto sabe a imensa sensação de impotência que isso traz. É uma das experiências mais bizarras que se pode ter. A tremedeira demorou menos que um minuto, mas pareceu uma hora. Durante a muvuca, uma das nossas clientes, que havia chegado há pouco e estava exausta dos 700 metros de desnível que tínhamos acabado de ganhar, não entendia por que todos se afastavam das paredes da pousada. “Saia daí, não consegue sentir o tremor?”, gritei. Tivemos que praticamente arrastar ela para fora.

Após o susto, pedras do tamanho de casas começaram a rolar nas encostas que se destacam acima do povoado. Este foi o oitavo terremoto que testemunhei, e pela experiência que tenho calculei que se tratava de um moderado 6.5 na escala Richter. De fato a magnitude no local onde estávamos não havia sido das maiores. Mais tarde soubemos que o epicentro foi no distrito de Gorkha, a cerca de 80 km de Katmandu e bem longe do Annapurna.

Usando a conexão de wi-fi da pousada, dei uma pequena espiada no Google News. Apenas dez minutos depois do tremor, já havia notícias de que um terremoto de escala 7.8 destruíra boa parte de Katmandu. Terremotos sempre começam com um tremor forte que é seguido de abalos menores, chamados de réplicas. No caso do Nepal, por se tratar de um sismo de magnitude tão grande, as réplicas chegaram a 6.5.

Durante a nossa segunda tentativa de comer, sentimos o segundo abalo. Dessa vez durou apenas oito segundos, e em seguida ouvimos novos deslizamentos no fim do vale. Decidimos continuar o trekking, e quando estávamos perto de Jinhua, um pequeno vilarejo do povo Gurung, sentimos um terceiro tremor. Já em Jinhua, que fica a menos de 2 mil metros de altitude, pudemos ver os primeiros sinais de destruição. Algumas casas tiveram parte do teto destruído e muitas rachaduras apareceram na trilha feita com rochas cuidadosamente empilhadas.

Mal acreditamos quando começamos a ouvir o número de mortos. A princípio, falavam em 700. Tentei acalmar todo mundo dizendo que era sensacionalismo da mídia e que não deveria haver tantos danos em Katmandu. Então chegaram as notícias dizendo que os templos da praça Durbaur, que havíamos visitado há poucos dias, tinham sido totalmente demolidos. Só acreditei quando vi uma foto. Enchi-me de tristeza quando soube que pertenço à última geração que viu em pé os templos de Bhaktapur, a 14 km de Katmandu. A bela cidade medieval da cultura newari teve seu auge há mais de três séculos e já tinha resistido a dois grandes terremotos.

Escrevo este texto em Pokhara, que não foi tão fortemente atingida. Sentimo-nos profundamente impotentes por não poder fazer nada para ajudar as famílias que perderam tudo e todos. É triste admitir, mas a nossa prioridade agora é sair do país. Tentamos contatar a embaixada brasileira em Katmandu para obter um pouco de informação sobre a situação do único aeroporto da cidade. Uma hilária resposta veio dias depois, dizendo que eles tinham ouvido rumores de voos que conseguiram sair do país.

Apesar de milhares de vítimas fatais em Katmandu, não se trata da região mais afetada. Perto do epicentro há dezenas de cidades pequenas nas quais as autoridades ainda nem chegaram. Ontem encontrei uma equipe de médicos estrangeiros nas ruas de Pokhara que decidiram fazer uma expedição à região de Langtang, ao norte de Katmandu, para avaliar os danos e ajudar as vítimas. Neste momento a contagem de mortos excede 4 mil.

Assim como os outros terremotos que testemunhei, esse não tem sido diferente quanto à falta de informação. O número real de vítimas só será conhecido após algumas semanas, e a grande maioria das mortes poderia ter sido evitada com construções feitas de ferro e cimento em vez de tijolos empilhados e barro. Há quase três décadas sem terremotos de grande magnitude, o Nepal simplesmente não teve dinheiro para construções antissísmicas e agora sofre por isso. Após uma mudança radical no fim de 2005, quando saiu de uma monarquia e sentiu pela primeira vez o que é democracia, o país sequer começou a se organizar. Estamos em 2015 e o Nepal ainda não tem uma constituição. Mesmo tratando-se de uma das 15 nações mais pobres do mundo, espero muito que o país consiga vencer a crise política e se organizar o suficiente para sair do estado de sobrevivência.

UMA TRISTE HISTÓRIA

TERREMOTOS SÃO PARTE DA HISTÓRIA DO NEPAL. INFELIZMENTE, O PAÍS AINDA NÃO ESTÁ PREPARADO PARA ENFRENTAR ESSAS TRAGÉDIAS

O terremoto que atingiu o Nepal em abril foi resultado da colisão, a 15 km de profundidade, entre as placas tectônicas da Eurásia e da Ásia do Sul. Ao se chocarem, elas liberaram uma energia equivalente a 375 bombas de Hiroshima, que chegou à superfície na forma de um devastador tremor de 7.8 na escala Richter (considerado de grande magnitude nessa graduação, que chega a 10). Foi o pior tremor sofrido pelo país desde o grande terremoto de 1934, que atingiu 8.2 na escala Richter e deixou mais de 10 mil mortos, destruindo grande parte da capital Katmandu. Antes disso, inúmeros outros tremores de menor intensidade marcaram a história do Nepal, que está situado bem em cima do encontro de algumas das placas tectônicas mais instáveis do planeta.

Geólogos e sismólogos já vinham prevendo um novo terremoto de grande porte na região – o alerta mais recente foi dado pelos cientistas há cerca de dois meses. Porém o Nepal é um dos países mais pobres do mundo, e ainda não conseguiu se estruturar para enfrentar esse tipo de desastre. Em sua maior parte, as construções ainda são feitas com barro, madeira e tijolos, sem reforços antissísmicos. Não existe estrutura hospitalar adequada e há milhares de vilas espalhadas pelas montanhas, algumas com distância de até um dia de caminhada. Quando a tragédia acontece, o povo tão humilde e gentil precisa contar com a ajuda que outros países e organizações possam lhe dar.

NO ALTO

ENQUANTO CIDADES E VILAS LIDAVAM COM ESCOMBROS E MILHARES DE VÍTIMAS, QUEM ESTAVA NAS GRANDES MONTANHAS DO HIMALAIA ENFRENTAVA OUTRAS DIFICULDADES

O terremoto do dia 25 de abril teve seu epicentro a 240 km do Everest, mas a distância não foi impecilho para que fizesse um grande estrago na montanha mais pop do mundo, que vivia sua alta temporada de 2015, com centenas de candidatos a cume, guias e sherpas nos acampamentos.

O tremor fez com que glaciares se quebrassem e soltassem das montanhas, atingindo em cheio o campo-base na pior avalanche de sua história. “Houve deslizamentos em todas as montanhas ao nosso redor”, disse o experiente guia Dave Hahn. A maior delas veio de um glaciar suspenso no colo norte do Pumori, que fica no lado oeste do Everest, e varreu o campo-base com uma nuvem de gelo e rochas que rasgou as barracas e cobriu tudo de destroços. Os cerca de 200 montanhistas que já estavam nos acampamentos 1 e 2 escaparam da avalanche, mas se viram isolados na encosta: o caminho até o campo-base, que passa pela sempre traiçoeira Cascata de Khumbu, estava intransponível. Dias depois, os montanhistas foram evacuados da montanha de helicóptero.

A temporada 2014 havia sido a mais mortal do Everest, com 16 sherpas mortos, vítimas de uma avalanche na Cascata. Tristemente, a avalanche deste ano estabeleceu um novo recorde: 24 mortes foram confirmadas até o fechamento desta edição. Também houve grandes avalanches em outras montanhas dos Himalaias, como Makalu e Annapurna, porém sem vítimas.

O dia em que a terra não parou

POR ERIKA SALLUM, REDATORA-CHEFE DA GO OUTSIDE

Minha primeira reação foi um estúpido sorrisinho. “Esses hotéis do Nepal são tão frágeis, passa um avião e tudo treme”, pensei. Era por volta do meio-dia e o altíssimo barulho lembrava um jato militar. Depois veio um começo de desespero – a se julgar pelos gritos dos pedreiros da obra vizinha, o prédio em construção estaria desabando. E cairia em cima do meu quarto, certeza.

As pernas doloridíssimas depois de um trekking de quatro dias pelos Himalaias se esqueceram do ácido lático e saíram em disparada por longos seis lances de escada até a rua. Não houve tempo para pensar em pegar passaporte, celular ou mesmo um casaco: corri com a roupa do corpo, sem olhar para trás, na velocidade de um Kilian Jornet voando baixo por alguma trilha dos Alpes. Foi então que o pânico surgiu, firme e forte. O asfalto também tremia. As casas vizinhas idem. O solo parecia aqueles brinquedos infláveis de quando a gente era criança, tipo pula-pula.

Já editei dezenas de reportagens desta Go Outside sobre como sobreviver – e manter a calma – em desastres naturais. Mas pouco adiantou. Quando um dos muitos nepaleses desesperados que corriam pela rua gritaram “earthquake!”, perdi o controle dos nervos (não que tenha algum, na verdade). A respiração ficou tão ofegante que um colega gringo se esqueceu do próprio terror, me segurou pelo braço e disse encarando meus olhos: “Inspire devagar, isso, com calma, vá respirando e contando até dez”.

Meu passaporte! Caramba, o celular. Após uns 15 minutos na rua, voltei para o quarto para pegar minha mochila. Sentei na cama e apenas pensei na sorte de não estar soterrada em escombros. Estava viva! Mas o alívio foi por pouco tempo: a terra voltou a tremer. Dá-lhe correr pela escada, dessa vez segurando a mochila com força.

Já na rua, para tentar me acalmar, puxei conversa com os funcionários do hotel, gente simples e doce do Nepal que te sorri mesmo depois de o chão sacolejar. Claro que eles já passaram por isso e teriam palavras de conforto. “Nunca na minha vida enfrentei algo assim! Dizem que em Katmandu tem muita gente morta. Foi um terremoto forte!”, me respondeu, de olhos arregalados, o gerente. Ai, Jesus. Que surreal. Eu estava em Pokhara, a segunda maior cidade turística do país, depois da capital, e porta de entrada para os famosos e míticos trekkings da cadeia do Annapurna. O epicentro daquele que seria o maior terremoto do Nepal desde a década de 1930 se localizava a menos de 80 km dali. Apesar de não ter sofrido grandes danos, Pokhara parecia traumatizada: o medo e um ar de perplexidade podia ser visto no rosto de todos. Principalmente no meu.

E foi esse mesmo olhar amedrontado que eu encontrei de novo às 5 horas da manhã do dia seguinte. Naquela noite após o terremoto, decidi dormir de roupa, com a mochila e uma garrafa de água do lado, caso acontecesse outro susto. Meio paranoica, pensei comigo. Dormi mal, até que gritos me acordaram: a terra tremia de novo. Porém eu já não sabia se era verdade ou se meu corpo estava percebendo coisas erradas. Corri, ritualmente, para a calçada, onde uma massa de nepaleses e turistas apavorados também se encontravam. Não sei dizer se senti esse terceiro tremor ou se apenas segui os berros dos outros. Sentei na rua e chorei feito criança, com uma saudade apertada de tudo que não estava ali.

Faz dois dias tudo isso. Escrevo este texto aqui de Pokhara. Aluguei uma moto ontem para checar se a cidade estava destruída – felizmente não encontrei uma só casa rachada. Os restaurantes funcionam, as pessoas seguem suas rotinas e é possível perceber algo estranho apenas mais à noite, quando dá para ver famílias abrigadas em barracas montadas em seus quintais.

Hoje continuarei a dormir de roupa, agarrada na mochila e na garrafa de água. Prendi o tênis na bolsa, assim posso correr descalça e colocar o sapato depois caso aconteça um novo tremor. É bem provável que eu tenha a mesma reação da noite passada, quando senti a terra se mexer, peguei o passaporte e saí em desespero. Só parei quando percebi que ninguém estava no lobby do hotel. Não havia terremoto algum.

Meu corpo volta e meia sente a terra balançar, e nessas horas olho em volta para checar se estou viajando. Tomo banho rápido, pois não quero ter de fugir enrolada em uma toalha. Estranho, não? Essas coisas não costumam acontecer com a gente, especialmente nas férias…

Espero ler este texto quando a revista for publicada e eu já estiver em São Paulo, toda feliz pelo simples fato de estar viva. Até lá, há um longo caminho até conseguir chegar a Katmandu e pegar o avião de volta para o Brasil. Há rumores de estradas destruídas e caos aéreo. Mas, como disse meu pai, está aí a graça da vida: é preciso aproveitá-la ao máximo, porque nunca se sabe quando a terra vai tremer embaixo dos nossos pés e a morte nos acenar de perto, toda serelepe.

Que os deuses das montanhas protejam o Nepal e seu povo maravilhoso.

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