Revista Go Outside: Sangue, Suor e Lágrimas

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Texto de Mario Mele / Fotos de Rodrigo Janz 

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de setembro de 2014)

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A convite do montanhista brasileiro-Argentino Maximo Kausch, nosso repórter Mario Mele fez um curso de escalada em gelo para tentar chegar Ao cume do Huayna Potosi, montanha dos Andes bolivianos – A empreitada não foi nada fácil, como ele relata aqui.

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Estamos em uma aula prática de um curso de escalada em gelo organizado pelo montanhista Maximo Kausch, na Bolívia. eu e mais dois alunos nos encontramos surrealmente ligados por uma corda a esse alpinista mezzo-brasileiro, mezzo-argentino, enquanto caminhamos pelo glaciar do Huayna Potosi, a 4.950 metros de altitude.

Fazia uns 5oC de um dia nublado de inverno. É assim, usando crampons presos nas botas e com uma piqueta na mão, que tradicionalmente são realizadas as progressões sobre gelo e neve. Maximo, que está bem à minha frente, de repente se vira e diz para eu ficar “esperto”. Então afrouxa um pouco a corda, sai correndo e se atira em uma fenda de gelo de uns 30 metros de profundidade. Nada mais Maximo Kausch que isso…

Tenho que agir rápido para colocar em prática o que aprendi no dia anterior. Em situações bem menos mortais que aquela, eu havia treinado a técnica umas dez vezes até então: travo no peito a piqueta (usada antes como um bastão de caminhada) e me atiro no chão, cravando a parte pontiaguda no gelo. Sou arrastado por mais uns três metros até que a lâmina que rasgava o gelo enfim trava. Ainda deitado, calculo que estou a menos de dez passos da entrada daquela greta. Não vejo Maximo, mas a corda amarrada à minha cadeirinha está completamente esticada, e deduzo que ele ainda está lá, pendurado no vazio. Respiro fundo, aliviado.

Mais tarde, no refúgio, assisti à sequência gravada em vídeo pelo fotógrafo que captou as imagens desta reportagem, Rodrigo Janz, e noto que meus colegas que vinham logo atrás na cordada fizeram o mesmo procedimento. Juntos, conseguimos evitar que nosso serelepe professor fosse engolido pelo imenso buraco de gelo. Caso contrário, Maximo – um dos maiores montanhistas do Brasil – teria sumido e nos arrastado consigo. Com a queda interrompida, nos levantamos e caminhamos no sentido oposto da fenda para ajudar nosso professor a voltar à trilha.

Quando ele finalmente ressurge, está rindo. “Boa, garotos! Vocês salvaram a vida do seu tio”, diz, orgulhoso dos alunos. Diante da cena insólita, esboço um sorriso, sem saber se achei mesmo graça de tudo aquilo.

Maximo nasceu na Argentina e, aos 9 anos de idade, mudou-se com a família para o Brasil, onde aprendeu a escalar, descobriu o amor pelas montanhas e viveu até os 19 anos – por isso fala um português sem sotaque. Como não curte ficar no mesmo lugar por muito tempo, decidiu morar na Inglaterra durante os dez anos seguintes. Hoje, aos 33, é guia de montanha quase em tempo integral – e se auto-intula o “tio” de seus clientes e alunos de escalada em gelo, como se fosse um professor da escola primária. E é de “tio” que a maioria dos meus colegas de curso passa a chamá-lo.
Maximo é bem conhecido no montanhismo. Já escalou em mais de 25 países e, em 2013, ao pisar no topo do Nevado Coropuna, um vulcão de mais de 6.400 metros de altitude localizado no Peru, bateu um recorde mundial: tornou-se a pessoa que mais vezes esteve no cume de montanhas com mais de 6 mil metros de altitude. O Coropuna foi o 59º. Até o momento, escalou 70 picos dessa magnitude (todos nos Andes) e, de acordo com suas contas, ainda faltam 47 para fechar o projeto de conquistar todas as 117 montanhas acima de 6 mil metros da extensa cordilheira sul-americana. Maximo também já fez expedições nos Alpes, nos Montes Pamires (Ásia Central) e no Himalaia, onde trabalhou como guia de montanha acima dos 8 mil metros.

“Não é raro eu ficar duas semanas completamente isolado, sem ver trilhas, marcas de pneu… nada, nenhum rastro humano”, diz. “Os aviões comerciais que cruzam o céu à noite são a maior proximidade com as pessoas que eu tenho nesse tempo.” De volta à civilização, o tio se sente deslocado. No Brasil, Maximo não tem nem conta em banco e, por isso, fica indignado cada vez que precisa resolver um trâmite financeiro, seja para receber o pagamento por algum texto ou foto que contribui com a imprensa (incluindo esta revista, que jamais conseguiu pagá-lo), seja para fechar patrocínio com uma marca. “Acho muito difícil lidar com essas burocracias”, diz, meio revoltado. “Escalar no frio e na altitude, respirando ar seco, tudo isso você supera. Na montanha as coisas são bem mais simples. Ninguém vai te pedir o CPF.”

Em julho deste ano, na Bolívia, ele organizou dois cursos de escalada em alta montanha, cada turma com 17 alunos, em média, todos brasileiros. Além de ensinar técnicas fundamentais de como andar em glaciares, Maximo batalha para desmistificar seu esporte, ainda pouco conhecido por aqui. “Quando eu comecei, a maioria dos montanhistas brasileiros da época dizia para eu não ir ao Aconcágua ou ao Everest porque esses lugares não eram para pessoas ‘comuns’ como eu. Mas por que não? Por que eles se sentiam tão especiais assim?”, questiona, hoje, inconformado. “Esses caras sempre quiseram mostrar, em livros ou palestras, que o que fizeram é heroico.” Mas, para ele, há exceções, como os brasileiros Manoel Morgado e Helena Coelho. “Esses dois não colocaram suas conquistas em um pedestal e são exemplos do verdadeiro montanhismo, porque vivem a essência do esporte.”

Como guia, Maximo “acha legal” que os brasileiros sejam pessoas divertidas. E, se fosse para escrever um livro sobre suas peripécias, iria preferir contar as situações mais inusitadas que já viveu na montanha, não os feitos grandiosos. Como quando achou ruínas incas nos Andes, em 2013, ou tratou a crise de hemorroida de uma cliente na grande altitude. Maximo é capacitado em primeiros socorros em áreas remotas e já participou de dezenas de resgates nesses ambientes inóspitos, onde passa mais da metade do ano. Também conversa com propriedade sobre qualquer assunto relacionado à montanha: conhece a história do esporte e está por dentro do que os maiores escaladores da atualidade fazem. Ainda neste ano, tem planos de escalar na América do Sul com o montanhista suíço Ueli Steck, famoso pelos recordes de velocidade nos Alpes.

“VOCÊS ESTÃO AQUI PARA TOMAR água e se divertir”, diz Maximo na primeira aula teórica, dada no centro de convenções do Sajama, um hotel três estrelas no centro de La Paz. Confesso que achei meio contraditório ele falar naquela hora que “pisar no cume do Huayna Potosi [a oitava montanha mais alta da Bolívia, com 6.088 metros de altitude] seria apenas um detalhe”. Afinal, esse era exatamente nosso principal objetivo, o diploma indiscutível daquele curso de escalada em gelo. Mas depois entendi que, como guia de montanha, acima de tudo ele teria que prezar pelo bem-estar de seus clientes – e, nesse quesito, Maximo é quase uma mãe. Ou melhor, um tio.

A estada na capital boliviana, a 3.660 metros de altitude, é parte do processo de aclimatação, um assunto que montanhistas que pretendem ter sucesso precisam levar a sério. Ainda mais os brasileiros, que vivem praticamente no nível do mar. Tomar bastante água (cinco litros ao dia, se possível) ajuda a minimizar os males causados pela desidratação, acelerada nas grandes altitudes. Isso porque, para suprir a falta de oxigênio, o corpo humano ativa a hiperventilação: o coração acelera e a perda de líquidos e sais se torna mais intensa. Maximo explica que a aclimatação ideal demoraria uns 20 dias, mas, como teríamos apenas duas semanas para chegar ao topo do Huayna Potosi, o jeito era se contentar com esses cinco dias em La Paz. Garrafa d’água era equipamento obrigatório em qualquer saída para conhecer a cidade. Maximo sempre perguntava: “Está se hidratando, garoto?”, não importa se era um aluno de 20 ou de 50 anos.

De La Paz, seguiríamos de ônibus até um refúgio do Huayna Potosi, a 4.730 metros, que seria a nossa casa por mais quatro dias antes do ataque final ao cume. Primeiro, porém, também como parte do processo de aclimatação, subimos o Nevado Chacaltaya, uma montanha de 5.400 metros de altitude encravada nos arredores de La Paz. É um trekking por uma trilha larga – onde passa carro quando não há muita neve. Mais da metade do grupo sobreviveu a esse desafio, mas por falta de tempo paramos a uns cem metros do cume.

O processo de aclimatação é bastante sofrido, e naquele dia eu só consegui reverter uma pesada dor de cabeça com altas doses de ibuprofeno – um anti-inflamatório famoso entre os montanhistas, cujas cartelas ocupavam o maior espaço do kit de primeiros socorros de Maximo (uma caixa de ferramentas das grandes).

No Chacaltaya, estávamos acompanhados do escalador paranaense Pedro Hauck, amigo de infância de Maximo e montanhista que até hoje, pelo menos duas vezes por ano, vai aos Andes de carro. Na adolescência, eles costumavam sair de casa com suas mochilas para rodar, durante meses, a América do Sul pedindo carona. Como um segundo professor, Pedro, nessa primeira ida à montanha, nos ensinou a cravar a bota de trekking para não escorregarmos na neve e a nos concentrarmos nos próprios passos. Ele insistia que ritmo e foco são fundamentais para quem pretende vencer uma montanha de mais de 6 mil metros. Eu descobriria mais tarde que Pedro estava muito certo.

“Montanhismo é realmente um mundo à parte”, penso em uma das primeiras aulas teóricas, ouvindo Maximo comentar sobre um estudo publicado recentemente pela revista Nature. O professor nos informava que havia sido identificado o gene especial que alguns tibetanos carregam e que permitem a eles viverem em grandes altitudes. Era mais um indício da incrível adaptação humana a ambientes pouco acolhedores, porém não tivemos muito tempo para invejar esse processo evolutivo do qual queríamos fazer parte naquele momento.

Maximo logo nos trazia de volta ao mundo real. “Cerca de 99% das mortes nesse esporte é em razão de os escaladores subestimarem a montanha, muitas vezes por falta de conhecimento”, diz ele, que mesmo dando uma aula de boa conduta fala constantemente que não viverá por muito tempo devido ao esporte que escolheu para si.

Respeitar a montanha, porém, não tem a ver com virar as costas e voltar ao acampamento depois que a primeira coisa dá errado ou quando uma situação foge do controle. Segundo Maximo, os brasileiros que se dispõem a escalar o Huayna Potosi detêm o recorde mundial de desistência. “Guiei europeus na montanha durante dez anos, e eles são tão determinados que já chegaram a me questionar quando decretei o fim de uma expedição por conta de um terrível mau tempo”, afirma o tio. “Já brasileiro parece que quer apenas ter mais uma foto em um lugar legal para postar no Facebook.” Retruco justificando que não temos os Andes no Brasil, mas uns clientes holandeses durões que Maximo guiou certa vez no Himalaia foram sua defesa: o ponto mais alto dos Países Baixos é o Monte Vaalserberg, de apenas 622 metros de altitude.

Maximo consegue até ver um problema sociocultural no fracasso verde-amarelo nas grandes altitudes. “A classe média brasileira não está acostumada a sofrer. Acho que um carteiro brasileiro faria um cume de 6 mil metros com mais disposição que muito cara por aí que se diz atleta.”

Naquela hora, a discussão se transformou em uma motivação extra para eu me esforçar ainda mais e ajudar a quebrar a estatística – e contrariar o tio argentino, claro. E minha determinação em nada mudou depois que soubemos que um brasileiro de outra expedição acabara de desistir do cume do Huayna Potosi por causa de uma unha encravada do pé. Maximo deu a notícia com bom humor. “Está vendo como brasileiro desiste fácil? Se ele estivesse no grupo do tio, teria a unha extraída e ficaria zero”, disse, rindo.

Nem pensei em novos argumentos para defender os brasileiros. Só não sei se o jogo começava a virar ou a realidade me assustava ainda mais depois que um jovem montanhista inglês, que conhecemos no primeiro refúgio, quis subir o Huayna Potosi rápido demais, ignorando os princípios de aclimatação, e no fim não teve forças nem para dar os primeiros passos do ataque decisivo.

SUBÍAMOS EM DIREÇÃO ao glaciar do Huayna Potosi para mais um dia prático de escalada em gelo quando presenciei uma cena rara: Maximo estava indignado com seus alunos. Nos primeiros metros de um singletrack de três quilômetros, muitos não ajustaram corretamente as mochilas para levar uma carga relativamente pesada – composta por um par de botas duplas, crampons, piqueta, casaco extra, lanterna de cabeça e um litro de água. “A galera mentiu na ficha de inscrição, porque ninguém aqui parece ter experiência em trekking”, falou, enquanto tentava reunir todos para uma rápida demonstração de como regular as fitas da barrigueira, do peitoral e das alças. Não demorou até a paciência e o bom humor voltarem a imperar.

Durante nossa estada no primeiro refúgio (4.730 metros), as aulas teóricas também avançaram. Na área externa, encaramos rajadas de vento de quase 70 km/h para aprender sobre formações rochosas e acidentes geográficos dos glaciares. Ao fundo, o Huayna Potosi na paisagem era como uma projeção refletida na lousa, que continha cada um dos exemplos. Nele, vimos a longa crista da moraina (uma linha de pedras arrastadas pela geleira) que teríamos que cruzar para chegar ao acampamento alto (a 5.350 metros de altitude), visualizamos a posição das cornijas (acúmulo de neve em uma aresta da montanha) em relação aos ventos e entendemos como um bergschrund (enorme fenda entre duas geleiras) é formado.

No meio da ventania, Maximo e Pedro também ensinaram a montar uma barraca e a usar corretamente o fogareiro. Foram lições as quais prestei muita atenção, porque certamente as usaria além da alta montanha. Mas acho que Maximo interpretou minha curiosidade em saber como as avalanches se formam como um sinal de extremo interesse pelas aulas. Naquele mesmo dia, em mais uma lição prática de escalada em gelo, ele reservou um paredão vertical de uns 15 metros, com direito a uma seção negativa, para minha estreia na modalidade. “Parafusei três pontos de ancoragem”, tranquilizou-me, explicando sobre a fixação top rope que havia feito minutos antes.

Batendo piquetas técnicas (cujo cabo é mais curvado do que nas tradicionais) e chutando meus crampons afiados, usei toda a minha força para não desgarrar do gelo. “Verifique se há três apoios firmes antes de executar o próximo movimento”, gritava Maximo na base da via, enquanto meus colegas vibravam com cada manobra que eu fazia para subir mais uns centímetros.

Ao final da empreitada, eu estava exausto e com o saldo negativo de uma queda. Não que eu estivesse com calor, mas minha garganta já implorava por água. De volta ao chão, tirei a luva e comprovei que um golpe mal dado em uma quina de gelo tinha deixado meu dedinho com a mesma espessura de um polegar. Em uma passada mais apressada, também cravei a espora do crampon direito na minha canela esquerda, que agora sangrava. “Machuca mesmo”, foram as únicas palavras de consolação do tio naquele momento. Aprender a transpor lances verticais no gelo é fundamental para quem não quer desistir do cume de uma alta montanha e, por mais que a ficha de inscrição dizia se tratar de um curso para “iniciantes”, dali a dois dias, no meio da trilha rumo ao topo do Huayna Potosi, eu me pegaria em uma árdua batalha para vencer lances de gelo e encostas escarpadas.

Eram seis e meia da tarde e, depois de três horas de caminhada acumulando 620 metros de desnível, finalmente pisávamos no refúgio alto – um acampamento básico com duas enormes barracas, uma delas em formato geodésico com chão de madeira e paredes de ferro revestidas por lona. O céu estava limpo, e pude curtir o pôr do sol antes de saborear um macarrão instantâneo, que a 5.350 metros de altitude vira uma refeição gourmet, e me jogar dentro do saco de dormir.

Maximo colocou os sobrinhos para dormir cedo e não revelou o horário que acordaríamos porque, segundo ele, isso atrapalharia nosso sono. Mas já sabíamos que no começo da madrugada era preciso estar a caminho do cume.
Saí duas vezes da barraca durante a noite, encarando um frio inexplicável para “ir ao banheiro” – a regra número um da aclimatação não deixava minha bexiga em paz. Depois só lembro de acordar no meio de um fuzuê, com pessoas revirando mochilas e falando muito alto. Ainda eram onze e meia da noite e, por alguns segundos, fiquei completamente perdido, sem saber por onde começar. Foi quando Pedro colocou a cabeça dentro da barraca onde dormíamos em umas oito pessoas informando que deveríamos calçar as botas e jaqueta de pluma antes de seguirmos para o café da manhã.

Lá fora, Maximo anunciava a escalação de cada cordada. “Mario e Rodrigo Janz vão com o guia Mario”, disse, apontando para o mais experiente dos guias bolivianos. Lancei apenas um “hola, tocayo” (oi, chará), que aprendi com um homônimo mexicano e, depois de engolir um pão com manteiga e uma xícara de chá, me atei à corda. Nem esperamos todos os times se formarem para pegarmos a trilha.

Os mais experientes costumam dizer que o montanhismo é uma atividade muito mais psicológica do que física. Apesar dos 7oC negativos que fazia na montanha naquela noite, tive a certeza de que andar mais lento do que um policial em ronda é um duro jogo de paciência. Principalmente quando você está no meio de uma escuridão infernal, só com uma lanterna de cabeça para iluminar o próximo passo. À nossa esquerda, La Paz, que antes era um ponto de luz espremido no vale, começou a se abrir como um enorme tapete iluminado, cada vez menor à nossa vista conforme subíamos. À minha direita, de vez em quando surgiam gretas com imensas estalactites de gelo, que eu acompanhava com o facho que saía da minha testa.

Entre o acampamento alto e o cume seria uma jornada de uns três quilômetros, ganhando uma altura de 738 metros. O primeiro obstáculo foi um degrau de gelo de dez metros, uma fase na qual contrariei todas as normas de segurança: longe dos olhos de meu tio argentino, escalei sem clipar o mosquetão na corda-guia instalada na via. Percebi que usando mitóns (aquelas luvas de duas divisórias, uma para o polegar e a outra para os quatro dedos restantes) não seria nada fácil abrir e fechar o mosquetão a cada três metros para transpor os parafusos de gelo. Por isso preferi ir “na fé”, recordando as aulas práticas e cravando com violência no gelo a única piqueta que eu tinha e as botas cramponadas. Rodrigo, que é escalador de rocha e vinha logo atrás, disse que, para ele, não foi um problema enganchar o mosquetão na corda de segurança. “Eu poderia ter pagado caro pela minha inexperiência”, pensei. O guia Mario percebeu meu ato imprudente e foi seco. “Se você não consegue manusear o mosquetão, deve voltar.” Foi exatamente o que fez, naquele mesmo estágio, uma das duas mulheres de nosso grupo. Essa notícia eu ouvi minutos depois, através do rádio que Mario levava pendurado na alça da mochila.

Às quatro e meia da manhã, depois de três horas e meia de peregrinação no gelo, Rodrigo começou a ser tomado por uma náusea – uma situação comum na altitude. A cada 15 minutos, ele pedia para parar: sentava e vomitava em jatos. Nesse instante, fomos ultrapassados por uma cordada de cinco franceses que vinham rápido, cravando suas botas lateralmente na parede nevada, uma sobre a outra, em ritmo invejável. Não demorou até ficarmos bem para trás deles. De certa forma, ver montanhistas mais experientes que eu em ação me motivou.

Meus dedos dos pés e mãos se revezavam em dar sinais de congelamento, mas eu sabia que ainda estava longe de desistir. Bem diferente de meu parceiro de corda, que, depois de uma sequência de “para e anda”, travou no começo da subida que nos levaria à penúltima crista antes do cume. “Não consigo mais seguir nesse ritmo”, justificou. Mario me passou para a corda de outro guia boliviano que encontramos deitado na neve. Com as mãos atrás da cabeça, no estilo relax, ele assistia aos primeiros raios de sol que surgiam e mudavam a cor do céu lentamente.

Na última semana, Maximo havia monitorado a previsão do tempo acessando, de seu laptop modificado para a altitude, o site mountain-forecast.com. Portanto sabíamos que aquele dia seria perfeito para atacarmos o cume: não ventaria e o céu estaria limpo. Essa certeza me enchia de conforto, ainda mais quando eu lembrava da lição que Pedro nos ensinara na noite anterior. “Não desistam antes de amanhecer, porque a luz do dia sempre dá uma energia a mais”, disse ele, pausadamente, para que todos prestassem atenção.

A CRISTA FINAL ERA UM MISTO de gelo, neve e pedra. Dias depois, em uma livraria em La Paz, folheei um livro com fotos de montanhas bolivianas tiradas na década de 1980. Uma do topo do Huayna Potosi me impressionou: era pura neve. Só não vi aquilo como uma constatação do aquecimento global porque dizem que neva mais no verão, e inclusive por isso a temporada de montanha naquela região acontece durante a estação mais fria do ano.

A temperatura não parava de subir quando tive que esperar durante cerca de uma hora os guias bolivianos instalarem cordas na crista – uma segurança ignorada por montanhistas mais experientes naquele trecho. Para iniciantes como eu, no entanto, não seria nada fácil e tampouco agradável transpor pedras à beira de penhascos com aqueles crampons nos pés que nos obrigava a andar como astronauta. Encostei em um canto protegido daquela superfície estreita para sacar o protetor solar e os óculos escuros que havia carregado no bolso interno da jaqueta durante toda a madrugada. Na minha turma, eu ainda liderava o ataque ao cume, mas alguns grupos já retornavam. Vi os franceses que nos ultrapassaram a milhão desescalarem a crista com uma facilidade impossível de ser imitada.

Mais alguns passos e eu, enfim, estava no cume do Huayna Potosi, que não tem mais que dois metros quadrados. O guia ficou um pouco mais abaixo, me deixando curtir minutos de soberania, enquanto meus colegas não chegavam. Como um sobrevivente, eu questionei se tinha mesmo capacidade para estar ali, sentindo-me meio como um daqueles montanhistas-clientes que chegam ao cume de uma alta montanha praticamente rebocados por um guia local experiente.

Mas minha viagem de ar rarefeito melhorou depois que eu olhei para trás e reconheci o lago Titicaca e outras montanhas imponentes, como o Illimani e o Sajama, que se sobressaíam daquela paisagem infinita sobre as nuvens esparsas. “Caramba, eu venci essa piramba”, disse ao meu guia, sem me dar conta de que ele não entendia uma única palavra de português. Outros quatro integrantes do nosso grupo ainda chegariam ali, e incrivelmente Rodrigo foi um deles. Também vi Erick, um piloto de avião de 26 anos, não conseguir segurar o choro de emoção ao pisar no cume, e Bernardo, um carioca acostumado com trekkings em lta montanha, com mais uma conquista para a conta. Na volta, encontrei Silvio, que havia presenteado a si próprio com o curso pelos 50 anos de vida que acabava de completar, ainda se questionando se deveria ter encarado a crista final. Ele só tinha desistido nos 30 metros finais porque, de fato, era uma seção bem técnica. Mesmo assim, ainda lutava para aceitar sua decisão. “Você é um vencedor só de chegar até aqui”, tentei ajudá-lo. Ele se sentiu grato por eu ter dito aquilo, parecendo que nos conhecíamos havia anos.
Por experiência própria, Maximo já tinha dito que “tudo fica mais simples na montanha, e por isso as amizades se fortalecem”. Para mim, algo estava ainda mais claro do que aquele dia: montanhismo é quando nos afastamos um pouco da vida que levamos e conseguimos enxergar tudo de fora. Ou melhor, do alto.

FICOU A FIM?

Como participar do curso de Maximo Kausch na Bolívia:

Curso de escalada em gelo gente de Montanha duração: 13 dias Quando: Julho de 2015 Quanto: US$ 1.450 (sem aéreo) Pré-requisitos: Experiência em caminhada e vontade de se divertir O que levar: Equipamentos de trekking, como mochila, bastão de caminhada, bota e lanterna de cabeça (o resto está incluso no curso) Mais informações: Gentedemontanha.com

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